Livro mostra pedofilia por olhos de jovem que nega ser vítima

'Minha Sombria Vanessa' é nome da obra literária

© Divulgação

Cultura 'Minha Sombria Vanessa' 13/05/20 POR Folhapress

RIO DE JANEIRO, RJ (FOLHAPRESS) - Em 2018, Kate Elizabeth Russell conseguiu uma editora para seu primeiro romance, que vinha escrevendo desde os 16 anos, vendido pelo que o mercado editorial americano chama de contrato de sete dígitos. Desde então, "Minha Sombria Vanessa", lançado em março nos Estados Unidos e recém-chegado ao Brasil, vinha sendo aguardado com grande expectativa e publicizado como o "Lolita" da era #MeToo.

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Vanessa é uma jovem tímida de classe média e do interior que consegue uma bolsa para estudar num prestigioso colégio interno da elite americana. É ali, aos 15 anos, que sofre seguidos abusos de seu professor de literatura, Jacob Strane, de 42 anos.

Quando a sinopse da ficção começou a circular, porém, Russell, hoje com 35 anos, foi acusada nas redes sociais por Wendy C. Ortiz de ter roubado sua história. Em "Excavation", de 2014, Ortiz narra suas memórias de adolescente abusada por um professor. A acusação desencadeou uma discussão sobre lugar de fala e sobre como escritores não brancos são desvalorizados pelo mercado editorial, na mesma onda que envolveu o romance "Terra Americana", de Jeanine Cummins, acusada de se valer da dor de imigrantes latinos. Oprah Winfrey desistiu de discutir "Minha Sombria Vanessa" em seu enorme clube de leitura. O livro, apesar disso ou talvez por causa disso, tem sido um sucesso de vendas, e vem recebendo críticas elogiosas.

Cabe a Vanessa contar a história de sua relação com Strane, alternando entre trechos de sua vida aos 32 anos e suas memórias adolescentes. Mas é justamente em torno do que seja sofrer abusos que gravita o livro. Adulta, Vanessa não se vê como uma vítima de abuso, enxergando o caso como uma história de amor. "Era importante para mim que Vanessa não se assumisse como vítima", diz Russell.

"Muitas vezes o lugar da vítima é o de passividade, de uma pessoa indefesa, fraca, perdida, que não participa ativamente na situação. E isso não faz sentido para ela, que quer se ver como esperta e forte", diz a escritora. Para a protagonista, segundo Russell, rotular a relação que teve com o professor como abuso ameaçaria sua própria identidade. "As ideias de vítima e de abuso são tão absolutas que uma vez resolvido que é disso que se trata é a isso que a história se resume."

Russell trabalhou por anos no romance, que começou não como uma história de abuso, mas como Vanessa a vê: de amor. "A primeira vez que li 'Lolita', tinha 14 anos e fui tomada pelo livro como uma inspiração para a escrita. Nunca tinha escrito nada e quis emular aquela prosa", explica ela sobre o que considera o momento em que seu livro nasceu. "Fui arrebatada pela descrição de um homem adulto completamente fissurado por uma garota da minha idade. Foi a primeira vez em que tomei consciência dessa ideia da jovem sedutora e comecei a ver sinais dela em toda parte", diz.

Russell conta que, enquanto adolescente, via como romântica a relação de um homem de meia-idade perdido e em busca de sentido com uma garota que podia estar se sentindo da mesma forma. "Eu via filmes como 'Beleza Americana' e achava que era uma história de amor muito convincente."

A natureza da relação sobre a qual estava escrevendo, porém, foi mudando na cabeça de Russell. "Quando jovem, eu a via mais como uma história de amor, nebulosa, complicada, como nos livros de Emily Brönte. Não via nenhuma ligação com abuso ou trauma", diz a autora. "Conforme amadureci e entendi melhor a dinâmica das relações, comecei a ler mais narrativas de abusos sexuais e pedofilia, aprendi mais sobre trauma, e meu entendimento dessa história mudou." Foi quando, diz Russell, muitas das características que vinha desenhando para Vanessa passaram a fazer mais sentido.

Mas, uma vez que a autora passou a ver sua história de maneira diferente, o desafio passou a ser continuar retratando as cenas de sexo pela ótica da personagem. "Eu conhecia Vanessa tão bem que decidi confiar nela. Nas cenas de abuso, ela pensa nessas mesmas cenas como de intimidade", diz.

Para o leitor, porém, é difícil não se pegar falando com a protagonista, tentando convencê-la de que aquilo tudo não é o que ela pensa ser. "Tentei acreditar nas versões dessas cenas que eu já tinha escrito, colocando outras camadas por meio das quais o leitor pudesse perceber que aquilo era errado, que não é consensual, para que o leitor fosse capaz de entender Vanessa, o que ela experimenta, e, aos mesmo tempo, ver o comportamento de Strane, suas manipulações."

Russell diz que, apesar de entender por que o livro vem sendo descrito como o 'Lolita' da era #MeeToo, esta é uma descrição incompleta. "É uma resposta à 'Lolita'", diz. "Meu livro não é uma versão de 'Lolita', é uma história de uma garota crescendo numa cultura em que o conceito de Lolita se descolou de seu contexto do livro de Nabokov. No mundo de Vanessa está a ideia de Lolita que permeia a nossa cultura, que se tornou a representação da adolescente sedutora, com óculos de sol no formato de corações e pirulitos."

Nas redes sociais, mulheres se perguntavam se Russell havia sido, como sua personagem, abusada na adolescência. Ao ver as pessoas contestarem sua experiência pessoal para abordar o tema do abuso, ficou claro para Russell que era preciso criar fronteiras entre si e o livro, assim como determinar, conta ela, quais perguntas aceitaria responder. "Tive de decidir como abordar a relação pessoal com a história e sobre o que me sentia confortável em compartilhar."

Assim como Wendy C. Ortiz pensou que o livro havia sido baseado em sua história, muitas outras mulheres podem pensar o mesmo. Como Vanessa Springora. Se sua história não fosse um segredo, mesmo para si, até pouco tempo atrás. No começo deste ano, a escritora francesa lançou "Le Consentement", no qual revela uma relação, que ela achava ser de amor, mas que era, na verdade, de abusos com um famoso escritor.

Springora, hoje com 48 anos, se relacionou, aos 14, com Gabriel Matzneff, 35 anos mais velho, pelo qual julgava estar apaixonada. O livro caiu como uma bomba sobre a França, que discute como tem lidado, historicamente, com casos de pedofilia envolvendo seus intelectuais

.MINHA SOMBRIA VANESSAAutor Kate Elizabeth RussellEditora IntrínsecaTradução Fernanda AbreuPreço R$ 49,90 (432 págs.); R$ 34,90 (ebook)

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