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'Não entro mais em mercado', diz homem torturado em São Paulo

Hermenegildo sobreviveu a uma sessão de tortura. Foi amarrado, amordaçado com um fio de náilon e obrigado a ficar sentado no chão sobre uma poça de água

'Não entro mais em mercado', diz homem torturado em São Paulo
Notícias ao Minuto Brasil

14:00 - 12/01/20 por Folhapress

Brasil Tortura

SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) - Fábio Rodrigo Hermenegildo, 37, tenta esquecer um pesadelo há quase dois anos. As cicatrizes nas mãos e o pé direito que passou a mancar, porém, o impedem.Nada tirou tanto o sono do ajudante de pedreiro quanto o dia em que virou meme e parou em mensagens de celular de gente conhecida. "Foi um pesadelo. Só durmo à base de remédios", diz.

Hermenegildo sobreviveu a uma sessão de tortura. Foi amarrado, amordaçado com um fio de náilon e obrigado a ficar sentado no chão sobre uma poça de água com a calça abaixada. A água era para potencializar os choques elétricos nas mãos.

Também foi espancado com um cabo de vassoura. Ele diz que foram esses golpes que o deixaram manco.

Ele foi levado ao "quartinho do terror", lugar usado para surrar quem é pego em furtos. No mês de março de 2018, foi flagrado com um pedaço de carne escondida sob a camisa no Mercado Extra do Morumbi, na zona oeste de São Paulo.

Cercado por seis seguranças, foi mantido em cárcere privado e obrigado a repetir frases como: "Galera, não rouba mais no Extra Morumbi" e "Eu errei e me ferrei", enquanto levava choques e pancadas.Reportagem do jornal Folha de S.Paulo publicada em setembro de 2019 mostrou que esse tipo de prática não é rara no Brasil.

"O que eu fiz foi um ato de desespero. Estava faltando comida em casa. Eu e a minha mulher estávamos desempregados. Eu errei, mas nunca pensei que passaria por isso", afirma.

Ele falou com a reportagem oito dias antes da audiência, marcada no dia 20 no Fórum Criminal da Barra Funda, que pode condenar seus agressores. "Eu nunca mais terei a vida que levava antes. Hoje nem entro em supermercados. Por isso, o que eu mais quero é que eles paguem pelo que fizeram", afirma.

No ápice do espancamento, Hermenegildo fez um pedido. "Eu disse para eles: podem me matar. Não aguento mais tanta dor." Diz que começou a ser torturado por volta do meio-dia; foi liberado à noite. "Eu só pensava em morrer. Queria ser atropelado pelos carros. Seria mais fácil se tudo tivesse acabado ali mesmo."

Entre uma ameaça e outra, afirma que viu seus agressores trocarem informações com seguranças que supostamente trabalhavam em outra unidade do Extra. "Eles mandavam vídeos que mostravam eu sendo agredido. Daí os colegas dele respondiam: aqui a gente ensaca e afoga."Nascido na periferia paulistana, cresceu numa casa de dois cômodos com a mãe e nove irmãos. Tem três filhos do primeiro casamento e um quarto filho do segundo.

Não concluiu o ensino médio. Dos 23 aos 25 anos, viveu sob o elevado Presidente João Goulart, o Minhocão. Andava pelo centro usando cocaína e crack e acumulou passagens na polícia por furto.Em 2010, foi condenado por roubo, mas recebeu pena alternativa. "Foi o período mais difícil da minha vida. A minha mãe não teria aguentado me ver na rua se fosse viva."

Hermenegildo não responderá na Justiça pela tentativa de furto no Extra.A tortura que sofreu veio à tona só em setembro, quando um dos agressores decidiu publicar um vídeo na internet. "Nesse período todo eu fiquei escondido, porque achava que o meu erro era maior do que o espancamento que eu sofri", diz.Dos seis réus –quatro funcionários do Extra e dois da empresa de segurança G8–, só dois continuam presos.

Ademir Ferreira dos Santos, apontado nas investigações da Polícia Civil como um dos responsáveis por filmar e espancar a vítima, estava entre os presos, mas morreu em 3 de dezembro após passar mal numa cela do Centro de Detenção Provisória Pinheiros 2.A SAP (Secretaria de Administração Penitenciária) abriu investigação sobre a morte. Segundo a certidão de óbito, Ademir morreu por complicações de AVC (Acidente Vascular Cerebral) e hepatopatia crônica (doença no fígado).

O advogado de Hermenegildo, Claudiney da Silva Leopoldino, diz que vai aguardar a audiência na esfera criminal para ingressar na cível com pedido de indenização por danos morais e materiais contra o Extra e a G8. "Vamos pedir indenização de ao menos R$ 700 mil", planeja.

Hermenegildo também afirma que não recebeu nenhuma assistência do Extra até agora.Leopoldino diz crer que os cinco réus possam ser condenados na Justiça por tortura, algo que não aconteceu com dois seguranças que chicotearam um adolescente de 17 anos flagrado tentando furtar barras de chocolate do supermercado Ricoy, na zona sul. Eles foram condenados por lesão corporal."A maioria dos agressores eram funcionários do Extra. Ou seja, era uma prática institucionalizada. Também já temos manifestação de juiz reconhecendo que houve tortura quando um dos acusados teve um pedido negado de revogação de prisão".

A tortura é um crime inafiançável e imprescritível, que não pode ser perdoado por indulto do presidente.Há dois anos Hermenegildo não consegue emprego com carteira assinada, mas tem um plano para quando obtiver reparações na Justiça. "Quero sair de São Paulo, morar numa cidade pequena e voltar a dormir em paz".O Extra disse, em nota, que proíbe o uso de qualquer tipo de violência. Afirmou que colaborou com as investigações e que demitiu os funcionários identificados nas agressões.

Em relação à alegação de que outros funcionários da segurança praticam tortura, a rede afirmou que seus seguranças são treinados para respeitar os direitos humanos. "A empresa possui canais formais de denúncia para a comunicação de atos que infrinjam valores, políticas e procedimentos da companhia."Sobre a acusação de que não ofereceu assistência à vítima, o Extra disse que soube do caso no dia 12 de setembro de 2019 e que não recebeu nenhum contato de Hermenegildo ou de seu advogado.

Também procurada, a G8 disse que, após saber do ocorrido, foi a primeira a comunicar a polícia e também que afastou seus colaboradores envolvidos.

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