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Análise de DNA reescreve saga dos primeiros habitantes do Brasil

Estudos mostram idas e vindas no continente, o desaparecimento do grupo ao qual pertencia Luzia e possível parentesco com povos da Oceania

Análise de DNA reescreve saga dos primeiros habitantes do Brasil
Notícias ao Minuto Brasil

20:03 - 08/11/18 por Folhapress

Brasil Ciência

Dois estudos monumentais, ambos com participação de cientistas brasileiros, estão reescrevendo a história dos primeiros habitantes das Américas com a ajuda do DNA.

Os novos dados revelam uma saga complicada, que inclui idas e vindas entre as diferentes regiões do continente, o desaparecimento do grupo ao qual pertencia a célebre Luzia, "brasileira" de 11,5 mil anos de idade, e um possível parentesco de alguns indígenas do passado e do presente com povos da Oceania.

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Uma das pesquisas está na edição mais recente da revista científica Cell, enquanto a outra sai no periódico especializado Science. Entre os marcos dos estudos estão as primeiras análises do genoma completo de vários seres humanos pré-históricos do Brasil.

A maioria deles viveu na região de Lagoa Santa (MG), perto de Belo Horizonte, sendo, portanto, membros da população à qual pertencia Luzia, com idades entre 10,4 mil e 9.600 anos. Os pesquisadores também obtiveram o DNA de pessoas sepultadas nos sítios arqueológicos de Laranjal e Moraes, em São Paulo (com 6.700 e 5.800 anos de idade, respectivamente), e do sítio Jabuticabeira2, em Santa Catarina (cerca de 2.000 anos).

"Esse tipo de estudo de grande escala com DNA humano antigo já tinha sido feito em praticamente todas as regiões do mundo. Faltava o continente americano, em especial a América do Sul", diz André Menezes Strauss, do Museu de Arqueologia e Etnologia da USP.

Strauss é o único pesquisador a assinar ambos os estudos, que foram liderados por duas das instituições que hoje disputam a supremacia nesse ramo de pesquisa: o Instituto Max Planck, na Alemanha, e o Museu de História Natural da Dinamarca, em Copenhague. Entre os coautores brasileiros, também há especialistas do Museu Nacional da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro) e da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, entre outras instituições.

No total, os estudos "soletraram" o DNA de 64 esqueletos antigos das Américas, comparando-os com os poucos que haviam sido analisados em trabalhos anteriores e com o genoma de indígenas e outros grupos humanos do presente.

De modo geral, as conclusões de ambos os grupos de cientistas batem. A primeira, já bastante fundamentada graças a pesquisas arqueológicas, é a da origem comum de todos os indígenas atuais. Eles descendem de uma população ancestral asiática que se fixou, por volta de 20 mil anos atrás, na parte leste da chamada Beríngia- a língua de terra que unia a Sibéria ao Alasca no fim da Era do Gelo.

Tudo indica, no entanto, que se tratava de uma população relativamente diversificada do ponto de vista genético, que passou por uma série de divisões e expansões populacionais, num ritmo relativamente rápido, ao longo dos milênios seguintes. Exemplo disso é o parentesco considerável entre a criança conhecida como Anzick-1, do Estado americano de Montana, com quase 13 mil anos de idade, e os antigos habitantes de Minas Gerais, do Chile e de Belize, na América Central, todos com mais de 9.000 anos.

É nesse ponto que as coisas ficam complicadas, e os estudos divergem entre si. Vários desses esqueletos muito antigos são caracterizados pela chamada morfologia craniana paleoamericana. Os crânios dessa época têm formato mais próximo do visto hoje entre aborígines australianos, nativos de Papua-Nova Guiné e Melanésia e africanos, a chamada morfologia australomelanésia. É por isso que as reconstruções do rosto de Luzia a mostram com feições "negras". A maioria dos indígenas atuais, entretanto, tem crânios que lembram mais o de povos do Extremo Oriente (com a morfologia dita "mongoloide").

Um estudo anterior tinha identificado, em etnias indígenas atuais, como os suruís, da Amazônia, um modesto componente genético associado às populações australianas e melanésias. Ficou no ar, portanto, a possibilidade de achar indícios ainda mais fortes dessa contribuição populacional no DNA do povo de Lagoa Santa.

No estudo publicado na Cell, isso não aconteceu. Os esqueletos obtidos no sítio arqueológico mineiro da Lapa do Santo, bem como os demais exemplares estudados, pertencem a linhagens muito antigas e peculiares, mas que estão incluídas dentro do grande grupo dos ameríndios, ou indígenas.

Por outro lado, a pesquisa da Science, liderada pelo dinamarquês Eske Willerslev, identificou esse "sinal genético australasiano" no DNA um esqueleto de Lagoa Santa que está guardado no museu de Copenhague. No entanto, outros paleoamericanos com idade similar não possuem esse componente em seu DNA.

"Fica muito difícil explicar isso. Por que esse componente só teria ficado preservado em um indivíduo de Lagoa Santa, sem nenhum outro exemplo no meio do caminho? De qualquer modo, ele não teria relação com a morfologia craniana, já que outros crânios com a mesma aparência são geneticamente ameríndios", explica Strauss.

A versão mais sofisticada da hipótese da contribuição de grupos ligados aos australomelanésios para o povoamento original das Américas foi formulada pelo bioantropólogo Walter Neves, professor aposentado da USP e mentor de Strauss. O paradoxo, diz o autor do novo estudo, é que Neves estava correto, mas numa escala diferente.

Isso porque, de fato, os dados genômicos mostram que os paleoamericanos de Lagoa Santa e outros lugares foram substituídos por outras linhagens de ameríndios, que se espalharam mais tarde pelo continente. Alguns desses grupos relativamente mais recentes parecem ter vindo da América do Norte e da América Central, incluindo uma "invasão" da América Central para os Andes há 4.200 anos.

"O mistério aqui é que a gente não tem correlatos arqueológicos claros dessas mudanças populacionais mais antigas. Ou seja, não dá para dizer que as populações mudaram por causa da chegada da agricultura, ou por outro fator, ao menos por enquanto", explica o arqueólogo.

Outro dado intrigante veio da possibilidade de examinar alguns aspectos funcionais do genoma dos antigos americanos -ou seja, o efeito de certos trechos de DNA sobre o organismo deles. O exemplo que mais chama a atenção é o gene EDAR, que tem uma variante, muito comum entre indígenas e populações do leste da Ásia hoje em dia, associada a características como o cabelo mais grosso e liso dessas etnias.

Acontece que alguns antigos brasileiros (como um dos indivíduos da Lapa do Santo e outro do sítio de Laranjal) também carregavam outra versão do gene, diferente da que predomina hoje entre os indígenas. Isso significa que eles poderiam ter cabelo crespo, por exemplo? Não necessariamente, explica Tábita Hünemeier, do Departamento de Genética e Biologia Evolutiva da USP, que também assina a pesquisa.

"É de se supor que eles teriam o fenótipo [característica visível] asiático em algum grau porque também carregavam uma cópia da variante atual do gene. Isso também depende de outros fatores que ainda não conhecemos, provavelmente outros genes que interagem com o EDAR."

Em vista dos novos dados de DNA, os pesquisadores resolveram dar literalmente uma nova cara ao povo de Lagoa Santa, a exemplo das icônicas feições de Luzia. Com base no crânio do chamado sepultamento 26 da Lapa do Santo, a antropóloga forense britânica Caroline Wilkinson, que já tinha reconstruído o rosto do rei Ricardo 3º (1452-1485), criou um novo busto para representar os brasileiros de 10 mil anos atrás. A figura ainda não tem apelido oficial, segundo Strauss.

A partir do ano que vem, com apoio financeiro da Fapesp (Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo), o arqueólogo da USP e seus colegas devem criar o primeiro centro dedicado ao estudo do DNA antigo na América Latina, com a promessa de elucidar mais detalhes do quadro geral sugerido pelos estudos desta semana. Com informações da Folhapress.

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